por Francirene Gripp de Oliveira

GARCIAS, Rômulo. Meio. Belo Horizonte: Mosaico Produção Editorial, 2022 – O belo livro de poemas de Rômulo Garcias trata de questões caras à poesia: a natureza da vida e a nossa condição de compreendê-la – quase sempre problemática. O título já é convite ao pensar.

A palavra meio equivaleria a contexto, ou a modo de se chegar a um fim? Valeria por metade? Talvez seu significado se mostre na função de advérbio, como na expressão “meio intrigante”? Não existe resposta correta para esse caso, no entanto, pois o emprego do termo no título, provoca oscilação de sentidos, favorece a dúvida, e coloca-se, afinal, como vetor do discurso poético que se pretende reflexivo.

Já no primeiro poema, o poeta encena certo estado de inquietação original, dado como responsável pelo surgimento da condição humana de indagar. Assim, no princípio dos tempos teria acontecido a criação de uma “partícula de tudo”, de consistência da fagulha. Esta propagaria a si mesma e às (nossas) indagações de modo ininterrupto: “Uma fagulha/ na forma de pergunta/ Nunca mais parou”.

Segundo o autor, uma vez iniciado o desejo de saber, esse se alastra, conforme atestam os poemas, levando os leitores na busca da compreensão de si e daqueles que estão à volta. Em Meio, a poesia se manifesta como ação reflexiva, a leitura se abre para o campo de indagação existencial.

Reflexões sobre ancestralidade, infância, pertencimento, conduzem à experiência dos limites: “O canto dos ancestrais/ Raças e encontros/ sou a beira / na fronteira de tudo”, como está no poema “água de batismo”. E assim como acontece no pungente poema “Irmãos”: “Nós aprendemos a solidão/ Desde o berço / Antes das rezas (…) O exercício do sozinho / A nos fazer inteiros/ E pronto para os vazios / da vida”.

Acontece que novas indagações são encaminhadas pelas primeiras respostas obtidas, e as perguntas não cessam. Assim, a imagem de si mostra dúbia; fraturas aparecem no espelho do curso da vida, como se vê no poema “as trincas”: “Qual eu se projeta/ e me inventa? E se este espelho quebrar / quantos serei”.

É aguda na voz poética do autor, a percepção da condição humana, conforme também se nota nestes versos: “Saber a nossa/ insignificância/ é meio caminho andado”. Esse modo de consciência continua também neste outro poema: “Há um caminho/ entre o musgo e o céu/ no meio o homem”. Assim desse modo, os versos realizam de modo explícito, o que se preconiza no título.

O sentido de meio também é percebido como espécie de lugar-tempo em que se pode, com humor, tratar certas situações difíceis. Refiro-me ao poema “Mineiriana”: “Mas aqui no nosso ‘causo’/ cercado de onça pintada/ cê acha que dá tempo de enrolar um pito?”. A pausa para pensar seria parte de uma estratégia diante do perigo?
Um poema simula as encruzilhadas do mundo não ficcional, onde rotas alternativas podem ser desconhecidas, o que torna o exercício de viver um ameaçador jogo de xadrez, de consequências funestas: “O peão apressado / é morto em todas as direções/ A rainha dança no xadrez.”

Frente a adversidades, é preciso atentar para as ilusões de perspectiva criadas por um olhar único. É o que parece advertir o eu-lírico também neste poema: “o eu é uma armadilha/ Ninguém é uma ilha”. A conclusão é que, por vários motivos, a convivência é uma necessidade de todos.

O poema “A espiral” apresenta uma linha geométrica como um modo de função colaborativa, capaz de emprestar seus segmentos, para que levem o conjunto de traços a novas posições e transformações, sem que ocorram perdas. “Cada círculo empresta sua parte/ para um trajeto do todo/ O segmento emprestado/ continua círculo / (…) A espiral / é um círculo/ que já não cabe em si”

Meio é um livro que vale análises por diferentes abordagens. Destaco a presença de um bestiário – animais elencados para a encenação de questões poético-filosóficas e aspectos do sagrado, conforme visto neste poema: “As minhocas habitam/ um verso oco/ A cobra cega é puro tato/ (…) O pão da ceia santa/ Quem amassou”.
Já o propósito de mimetizar acontecimentos políticos, como no poema “Gado”, traz à cena a fabulação de outros animais: “Eu assisto à besta fera/ ir ao curral pela manhã/ e à tarde mugir com o gado/ (…) Os urubus e as hienas/ rejeitam qualquer tipo/ de comparação”.

Garcias também reflete sobre o processo da criação, espaço-quando os artistas em geral, se veem em certo estado de solidão irremediável, a que o poeta representa com potente analogia: “Criar é tela em branco/ É trem descarrilhado/ (…) É mocinha amarrada / nos trilhos da ferrovia/ esperando o salvador/ que não virá”. Nesse cenário, o eu-lírico convoca histórias da cultura e, com essa narrativa, cria um campo de referências comuns, que dialoga habilmente com os leitores.
O mesmo tipo de interação se verá realizado de outro modo, agora em poemas com versos em fragmentos, aparentemente desconectados entre si, e produzidos como fossem inventários de bens e ambientes comuns a maioria de nós. Como ocorre no poema “Bijouterias e miçangas: “Escambo/ quinquilharias/(…) Falsas esmeraldas/ Ouro de tolo/ Ímãs de geladeira (…) o anel de carbono 14, ala 17, quarto 601”.

Desse modo, gradualmente o leitor percebe um clima de expectativa e suspense se instalando. Essa sensação também acontece no poema “O lobo”: “Riacho/ Cascatas/ Bambus/ Crina de cavalo/ Boi zebu/ Canecas / (…) Alma penada/ Lobisomem”. O intuito, em ambos os casos, é representar estados de desequilíbrio e ou o caos.
É preciso falar das imagens visuais nos versos do livro Meio. No poema “A partícula de tudo”, é de se destacar a beleza das imagens visuais: “o globo flamejante (…) incendiar a paisagem (…) abraço da escuridão”. E lembrar a cena anteriormente citada: “É mocinha amarrada / nos trilhos da ferrovia”, capaz, ainda, de provocar arrepios.

Há as metáforas que particularizam a intensidade da cor, exibindo o estilo luxuoso do artista da palavra, como no poema: “Quarto escuro/ Breu de cortar com faca”. Ou o caso do poema em que à cor se soma a sinestesia, resultando em bonitas onomatopeias: “Ouço o roncar do vulcão em La Palma/ Murmúrios de cinzas” – e: “Um galo canta/para a lava rubra/ parente do sol”. As imagens formadas pelo manejo habilidoso de metáforas e cores produzem grande beleza visual.
Se as pessoas e as coisas relacionadas são o meio ambiente de Meio, a categoria tempo parece funcionar como um grande agente que, uma vez tensionado, responderá ao poeta de maneira por vezes frustrantes, ora fugidias, ou sem sentido: “No desabrochar das plantas/Lá também não se escondia/ [o tempo] Ali se assistia ao frenético pulsar da vida”. Sem alternativa, o eu-lírico afirma: “Tempo, concluo/ se há, é mestre em disfarces maneiros”.

Outras ideias de tempo percorrem a linguagem poética de Meio. Por exemplo, o tempo da impermanência, a constatação do fluxo sem contenção, conforme estes versos: “Um rio/ o desvio/ o cio/ Nada se represa”. Já na composição poética que lembra haicais justapostos, “Murmúrios de cinzas” – percebe-se a condensação de passado e presente em tempo único.

E há o tempo da ansiedade, como parece acontecer no poema “Andarilhos”: “Pela estrada passam/resolutos andarilhos/ (…) o andar sempre é firme, apressado/ como quem tem um encontro marcado/ E está atrasado”. E ainda há o tempo das memóriasde infância e vida familiar, conforme o poema “Irmãos” e os versos de “O lobo”: “Tio Toni contava histórias de assombração”.

No poema Alice, outra ideia de tempo aparece, configurado entre o mundo onírico do poeta e as impressões desse fabuloso conto da tradição literária: “Mas hoje, das dobras do edredom, saltaram o Chapeleiro e o gato de Alice/ Vieram para o café da manhã/ O dia será uma maravilha.” A poesia se mostra plenamente em sua realidade onírica, e nesses versos, é preferida à realidade consciente; o tempo do sonhar no sentido de desejar, não é presente, nem passado, é perene.

Não poderia faltar comentário sobre o genial poema em prosa “Príncipe”, fruto, também, da interação do autor com outro tesouro literário. O diálogo acerta com muito humor, a missão do narrador que, semelhantemente a dos leitores, é primordialmente, manter-se vivo: “Nossa missão é resgatar aquele piloto perdido no deserto, pegar um exemplar da jiboia, um elefante, um chapéu e cascar fora!”

Ao final, sempre escolhendo um lado bem-humorado das questões, a voz poética emite conclusão sobre a condição da natureza humana: “Talvez seja só isso mesmo/ um esqueleto encarnado/Metido a besta/ Dentro de um ponto azul”.
Um poema de um único belo verso fecha o livro: “Viver é ir embora aos poucos”; o tema comporta a imagem da desintegração do ser. A meu ver, retoma-se a proposta do primeiro poema, em que se dá a busca da origem das (nossas) indagações, lá onde o poeta fez emergir a “partícula de tudo”.

Ao final da leitura desse livro envolvente, surgem novas perguntas! Outros leitores certamente terão muito o que indagar, além de apreciar os poemas! Perguntar, afinal, é um meio de se obter respostas.
Belo Horizonte, 24/06/2024

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