Toda vez que evoco memórias de infância, a sensação de calor é a primeira que aparece em cena. O mundo era ensolarado e, mesmo depois das chuvas, transpirar era como respirar. Ir para a escola significava caminhar sob sol escaldante, fosse manhã ou meio-dia, vestindo uniforme de saia pregueada em tecido azul-escuro de trama fechada.
Nos meus oito a nove anos, muitas vezes eu me atrasava e precisava dar corridinhas no trajeto. Aproveitava para puxar as folhas novas dos oitis, que tinham uma face coberta de paina.
Ia testando a resistência dos sapatos Vulcabrás, a que chamávamos “vaca brava�?, batendo-os com força no chão das ruas sem calçamento. A blusa de algodão branco voltaria para casa manchada de suor com poeira, isso era certo; no mínimo.
Ia alcançar as freiras já fechando o portão. Irmã Violeta! Irmã Cecília, me esperem! – gritava da esquina. O colégio Imaculada Conceição, felizmente, era um abrigo antitérmico. O prédio, construído conforme arquitetura dos anos 40/50 e certa tradição religiosa, era de dois pavimentos e ocupava todo o quarteirão. Pé-direito alto, corredores longos, salas espaçosas, biblioteca, pátios, jardins, horta, e uma capela em construção naquela época. Para meu olhar infantil, havia também os compartimentos reservados, os sombreados, as regras, as proibições, os silêncios… Mistérios guardados pelas clarissas franciscanas, com suas longas e pesadas vestimentas escuras, chamadas de hábito, o véu cobrindo a cabeça e descendo pelas costas até o quadril; a vida em coletivo. Tudo ali queria induzir à quietude, contrastar com a trepidação que existia lá fora.
No terceiro ou quarto ano do primário, minha sala de aula tinha janelões de madeira, abertas para o pátio do jardim de infância, que então, não mais nos pertencia. Quando a aula estava aborrecida, de canto de olho eu vigiava o balanço, a gangorra, o monte de areia. Somente nas árvores, morada de passarinho buliçoso, tinha som e algum movimento.
Se era hora de português, podia dar corda aos devaneios, porque, de repente, a professora ordenava – peguem o caderno de redação; ou, como se dizia anteriormente – o caderno de composição. (Aliás, não avisaram minha mãe sobre essa mudança, por isso ela errou o título, ao encapar meu caderno novo).
Marina Máximo Catão, minha querida professora, muito alva e de cabelos claros e cacheados, era rigorosíssima. Eu achava que ela tinha esse sobrenome máximo, e ainda o segundo a reverberar em ão, porque nascera sabendo coisas complicadas como períodos simples e compostos, o que é adjetivo, como usar dois pontos, as regras de acentuação de todas as palavras, a oscilante lista das gravidades e requebros da gramática.
Mais que de símbolos matemáticos, eu gostava dessa linguagem que se podia arranjar no papel, desmanchar com a borracha, escrever de outro jeito, passar a limpo e que, afinal, soava mais ou menos colada na língua da gente. (A vírgula é pausa para respiração – dizia a regra – aí, no livro havia uma frase sem vírgula, que tinha a extensão própria para me causar falta de ar).
De todo modo, julgava interessantíssimo, seguir docilmente os comandos da professora – eram chaves para a apropriação dos mistérios da escrita – fosse para composição ou redação.
Assim, estimulada pela paisagem lá fora, ou por rara presença de ilustrações nos livros em geral, ou pela magia de histórias lidas, eu desenvolvia os temas. Minhas redações iam para o mural da classe e, frequentemente, para o do corredor onde transitava muitos estudantes e professores. Havia colegas que escreviam muito bem e mesmo podiam tirar notas mais altas que as minhas, mas, era nos meus escritos que a professora parecia achar graça.
Um dia, meu caderno de redação foi circular entre as professoras do curso Normal (o que preparava para o ensino infantil). Depois, uns versejos satíricos sobre a independência do Brasil, apareceram no jornal de Valadares. Meus pais (que tinham dedos nisso), já davam como líquido e certo, meu destino de escritora.
Orgulhosíssima, a professora não economizava elogios, fato que deixou inconformadas outras alunas. Muito depois, já distanciada dos domínios de meu próprio umbigo, pude entender a aridez de algumas colegas comigo, e que perduraria anos afora – tinham origem no caderno de redação, ou de composição.
Foi o meu primeiro efeito colateral do ato de escrever.
France Gripp – 20/03/2023